quarta-feira, 17 de junho de 2009

A-Mar

José dedilhava os dedos pelo computador como se de um piano se tratasse. As notas feitas palavras passavam á sua frente ao ritmo suave da escrita. Bastava-lhe não pensar e somente escrever. Sem nexo nem destino como, muitas vezes, tinha sentido a sua vida, as frases iam discorrendo dos dedos.
Tinha chegado ao fim daquele dia cansado, só e vazio. Percorrera em vão as ruas da cidade grande em busca de trabalho. O sustento, que a crise apregoada, lhe roubara meses antes e, com ele a esperança e a dignidade. Estava cansado dos olhares condescendentes e inúteis, das negativas piedosas e dos telefonemas do banco clamando pelo sangue seco das suas finanças. Simplesmente escrevia linhas em desalinho e acordes em desacordo.
Ao longe, na noite, um cão ladrava seus lamentos. E José tinha por companhia o grito mudo dos seus pensamentos, das suas longínquas ilusões desvanecidas e a nostalgia de mil tempos perdidos. Encontrava-se ele mesmo perdido dedilhando letra após letra, enchendo a página sem qualquer tipo de sentido.
Tocaram á porta. É curioso a fragilidade do silêncio que se quebra com o simples premir do botão. É como se todo o mundo desandasse ao simples soar da campainha. Vem-nos toda a realidade como que sob a intensidade de um trovão. Uma campainha invade-nos, mutila-nos viola-nos ou enche-nos de esperança.
Era o mendigo que tinha por habito candidatar-se aos espojos do jantar ou melhor, ao prato que já sabia ser-lhe destinado, o Sr. Joaquim. Fazia questão de o tratar pelo o nome e pela deferência que as sujas brancas barbas lhe davam por direito. Fazia questão de recordar-lhe que os contratempos do destino não lhe retiram a identidade. A mesma identidade que, um dia o embalaram, bebé; no colo terno de sua mãe.
-Ah, Sr. Joaquim! Boa noite, entre – exclamou entre o misto de desalento pela solidão perturbada e o prazer daquela companhia de desventura – já lhe ponho a mesa.
Todas as vezes fazia questão de o sentar na sua mesa. Era o modo de lhe retribuir a companhia e apaziguar a culpa que, invariavelmente sentia, ao vê-lo partir para o rumo incerto dos mendigos. Sempre assim tinha sido, que a comida come-se á mesa e não sentado na soleira fria da porta. Nem aos animais abandonados, que o honravam com a sua escolha para que lhes aliviasse a fome, ele lhes destinava tão vazio lugar. A soleira, dizia, era para quem estava de passagem, e quem lhe lançava um pedido era porque reconhecia nele um amigo, e aos amigos, franqueamos-lhes a porta e a alma com os seus lamentos.
- Boa noite Sr. Zé. Deixe de se perder em incómodos. Eu como mesmo por aqui – disse com a humilde gratidão que o vestia. Não se habituara ainda aquele tratamento familiar.
- Ora, já sabe como é…aqui come-se á mesa e hoje, se não se importar, faço-lhe companhia.
- Tem piada o Sr. A casa é sua, faz o favor de me dar o que tem e ainda supõe um incomodo estar aqui ao pé deste seu criado?! – Retorquiu o velho com os olhos quase rasos de maresia. Notava-se-lhe que ainda lhe restava uma réstia de orgulho que ia sucumbindo á necessidade de pedir.
- Deixe-se de lamentos. O Sr. não é criado de ninguém! Aqui é um amigo, talvez o único que me vai aparecendo... – Disse numa surdina mais pensada que realizada…
- Está mau tempo por estes lados…- lançou em jeito de piada.
- Como assim?! – Perguntou José enquanto servia ambos do frango deixado pela empregada e de um copo de vinho. – Até tem feito bom tempo. O Verão é que teima em não decidir se fica.
- Não falava do tempo lá fora mas da intempérie que vai por esse peito a dentro - retorquiu naquele tom de pretensiosa despreocupação que esconde todas as certezas que somente a idade traz.
- Como assim – Atirou Jose tentando fugir á dura realidade da sua transparência.
- Ora vê-se até aos olhos de um cego que o meu bom amigo não está nos seus tempos –. Exclamou com disfarçavel preocupação enquanto se servia de um copo de vinho.
- Ora... nota-se muito?
António respondeu-lhe com aquele silêncio sábio dos velhos do destino, continuando a comer, que a fome não se compadece de filosofias. É uma criança mimada que reclama ser satisfeita no imediato. Assim são as fomes do corpo e da alma…as segundas mais impacientes que as primeiras.
Terminou de comer e tornou a encher o copo. Olho para o fundo dos olhos de José e ai se deteve. Um homem pode saber muito do outro olhando-lhe pelos olhos adentro. Conduzem-nos invariavelmente para os labirintos poeirentos da humanidade, transportam-nos para lá da realidade, para essa metafísica que nos sustem por dentro, como se de um outro esqueleto se tratasse e se nos transborda pelo olhar. Por isto não devemos deter-nos muito tempo nesse lugar onde somos estranhos e intrusos. Não aconteça encontrar nesses outros olhares, os nossos próprios medos, as nossas mesmas assombrações. Decidiu, por isso quebrar o silêncio.
- Amigo, há quantos anos nos conhecemos? – Perguntou.
- Sei lá…uns 3 anos talvez – Respondeu.
- Pois há tempo suficiente para que lhe conte de mim. Para um homem é bom, de tempos a tempos contar de si. Falando, evitamos que nos esqueçamos até do nome e das cicatrizes que temos agarradas á carne. – Disse bebendo um gole de vinho.
Nesse momento José reparou que, ao longo daqueles anos, noites seguidas, tinha-se limitado a franquear as portas aquele velho mendigo de uma dignidade esbatida pelo tempo mas não perdida. Nada, para alem do nome, sabia sobre ele. Nada daquelas coisas que fazem dos homens ilusoriamente mais homens: idade, nascimento, etc.
- Aqui onde me vê – Começou – já perdi a conta á idade. Acho que tenho uns 70 anos, mais dia, menos dia, que as contas perdem-se com os tempos. Não interessa! Nasci algures no Alentejo, num lugar onde a fome fazia escola e onde as crianças já nascem homens. Duros tempos aqueles! A minha santa mãe, pariu-me durante a ceifa, debaixo de uns arbustos que ali nasciam. Assim comecei logo a dar despesa. Como não pode trabalhar mais durante 3 dias, o cabrão do maioral não lhe pagou a jorna, o filho de uma grande puta! Desculpe a linguagem mas essa ficou-me atravessada quando ma contaram. Também quis o destino que é o mais justo dos juízes, que o ventre da mulher se secasse e nunca tenha deixado geração. Ou o ventre ou os tomates, tanto faz.
Parou para tomar um gole de vinho e continuou:
- Pois como lhe dizia, fui parido no campo. Eu e todos os da minha idade. Eram tempos de miséria…O meu pai guardava o gado da herdade e a minha mãe lá ia ceifando no tempo, ou servindo na casa sempre que era preciso. Eu, mal pus os pés no chão e as canetas sustiveram o peso do corpo, mandaram-me ajudar o meu pai. Tinha 6 anos! – Os olhos brilhavam-lhe como dois luzeiros. A memória acende os olhos, enche-os de mar.
- Mas os meus pais, que Deus os tenha na Sua paz, queriam que eu tentasse saber um pouco mais do que eles, o que não era difícil pois não conheciam uma letra. Falaram com o padre da terra, o Padre Alfredo, um homem do norte que tinha tanto de besta como de compaixão. Era um bom homem, ou boa besta se quiser. Estou a cansa-lo? – Perguntou a medo.
Que não, respondeu José, que continuasse. E serviu os dois de mais um copo de vinho. No fundo a curiosidade sobre aquela alma ia-se desvanecendo á medida que ia crescendo, num terminavel ciclo.
- Pois, continuando. Falaram com o Padre para que me ensinasse ao fim do dia um pouco de religião disfarçada de letras ou ao revés, tanto faz. Para o que eu haveria de estar guardado…. Sabe? As letras são coisas traiçoeiras. Um homem não dá por elas mas elas dão por nós. Quando as conhecemos, começamos a formar palavras e aprendemos que o mundo é mais mundo que suponhamos. As palavras mostram-nos que há mais terra para alem do horizonte da herdade dos Almeidas. Que podemos amar uma mulher pelas palavras que lhe escrevemos, ou pelas que deixamos de escrever… E podemos sentir tristeza pelo mesmo motivo.
- Foi assim que aos pouco, sem me dar conta me fui desgraçando com as palavras. Um dia descobri a que me haveria de transformar a vida. Sabe qual foi?
- Não – Respondeu José.
- Mar! È verdade! Mar! Um dia o Padre pôs-me a palavra á frente e pediu que a soletrasse: M-A-R. Lá disse eu a medo. As outras coisas que lia ainda sabia o que eram, a foice, a ceara, o burro, a ovelha, a flor, etc. mas mar?! Isso eu não sabia! O homem que era viajado e vinha lá de um lugar chamado Povoa do Varzim, explicou-me o que era o mar. Mais valia tivesse ficado mudo nesse dia!
- Explicou-me que o mar era assim como um charco que a chuvas de verão fazem mas muito maior, que era tão grande que nele cabia todo o peixe do mundo, que era tão grande que não se supunha ter fim. Falou-me que os homens amam o mar, e eu pensando que o que eles amavam eram as mulheres….que não, disse o padre. Que amar, ama-se o mar. por isso se diz a-mar. As mulheres, deixam-nos e dão-nos vazios e silêncios. O mar enche-nos e as ondas voltam sempre e falam coisas ao ouvido das gentes.
- Assim me falou, o raio do Padre, do mar… Disse que o sal era sagrado, porque estava presente no mar e nas lágrimas. Por isso, acreditava ele, que Deus era pescador e que, quando fez os homens, estava numa barca e colocou-lhes água do mar nos olhos para, quando chorassem, se lembrassem sempre da imensidão que existe em cada um. Que a imensidão do mar era maior que olhos da Maria de Luz. Quando lhe perguntei de onde vinha tanta agua assim, ele respondeu “ora rapaz, está bem de ver, são as lágrimas que correm sempre para o mar, como os rios, por isso é que o mar é salgado, porque lhe devolvemos a agua, quando choramos” Assim me falou ele do mar…
- Acho que o padreco era meio doido mas sabia das coisas. Dali saí com a certeza na alma que tinha de ir ver o mar mais, saí sabendo que só no mar eu seria homem inteiro. Saí daquele dia, do baixo dos meus 10 anos, com a jura, jurada que iria…a-mar. Foi nesse dia que me tornei maltês!
José mal acreditava no que escutava! Aquele mendigo, sujo e esgotado, encerrava em si uma sabedoria nobre. Nunca o tinha imaginado para alem do pobre que lhe batia á porta de tempos a tempos. Nunca se tinha interrogado quem era aquela alma. Sentia-se culpado por isso.
- Pois nesse fim de tarde entrei em casa e disse aos meus pais que ia ver o mar! Que o mar era maior que os olhos da Maria de Luz. A Maria era a moça mais bonita da aldeia. Todos a queriam namoriscar, mas diziam que a magana se lançava de olhares cá para o meu lado. Eu não era mau pedaço mas a Maria…. Ah moça de linda. Tinha uns cabelos de oiro e uns olhos que eram maiores que a seara grande da herdade. Juro! Que morra já aqui!!! Eu gostava da moça mas ela era de gente fina. A mãe era professora e o pai era comandante da guarda. Eu queria aprender as letras para lhe escrever coisas. Queria ser alguém, entende? Mas aquele dia mudou tudo! Um dia que começou com as palavras que se desconhecem e nos rasgam o entendimento. As palavras podem mais que isso a que chamam de amor, sabia? Por isso lhe digo, amigo José, não se perca de amores pelas palavras.
- Os meus pais riram-se, claro. A minha mãe agarrou-me no peito e perguntou-me o que era isso do mar. Acho que foi mais para me proteger do estaladão que pronto vinha da manápula do meu pai. Ele não achava lá muita piada ás minhas descobertas. Dizia que ainda me secava o cérebro, tanto saber. Que para guardar as ovelhas dos Almeidas não era preciso tanta sabedoria, e que se queria ver muita água, levasse mais vezes as ovelhas para beberem na barragem…
- Claro que eu pensava na Maria. A moça era o meu encanto e, apesar de ser novo, já tinha crescido o suficiente para as pernas me tremerem quando passava. Como era filha da professora cedo aprendeu a ler. Ela, de certeza já sabia do mar. Eu era moço mas já sabia o suficiente para querer que ela viesse comigo. Haveríamos de ver o mar juntos! Tinha só de esperar o tempo bastante para que ela se crescesse mais um pouco e então saímos os dois. Era assim que eu acreditava. Tinha de lhe falar, pensei eu.
- Três dias depois de ter aprendido sobre as águas, estava eu á beira da estrada com o meu pai e as ovelhas quando parou um automóvel ao pé de nós. Era a Maria e os pais. Ela nem me olhou de dentro mas vi que, daqueles olhos saia tanta agua que só podia o padre ter razão. Deus pôs o mar dentro de nós para o chorar-mos. O pai dela, acenou ao meu e disse-lhe que se iam embora da aldeia. O tipo era da guarda, tinha sido colocado noutra terra e levava a família a reboque. Estupor do homem! Desde esse dia que não posso com guardas. Dão-me um azar…. E lá foram estrada a fora com a Maria e o irmão mais novo. Esse também… Nunca lhe ouvi uma palavra. Dizia-se que passava as tardes a ver os pássaros da gaiola e a ouvir rádio…. Enquanto a Maria ouvia as estorias na oficina do sapateiro. Não sei! Só sei que nesse dia entrou-me a maré cheia nos olhos. Quando cheguei a casa jurei que ia partir para ver o mar e encontrar a Maria de Luz!!! Jurei com todas as ondas que chorei nessa noite.
- Passaram dois anos e eu continuei a guardar ovelhas e sonhos de a-mar. Sim, sonhos de sair. A aldeia já era pequena. Não vou dizer que não tenha arranjado os meus namoriscos, que um homem não é de ferro e a carne pede-nos aconchego. Mas nunca deixei de pensar na última imagem da Maria. E quanto mais pensava mais sabia que tinha de ir procura-la e, quanto mais pensava, mais sabia que a encontrava junto ao mar.
- Um dia peguei na trouxa durante a noite e parti! Foi a segunda vez na vida que senti o sal na cara. Deixei a casa e sabia que a minha mãe quando acordasse ia sentir a minha falta. Queria ter dito adeus mas, se o fizesse era pior. Lancei-me ao pó da estrada e, ao virar da ultima curva virei-me e vi, á porta da casa, a minha santa mãe acenando-me num gesto que ainda hoje não sei se era de bênção ou despedida. Ah, ela sabia, desde aquela noite que o meu destino estava traçado. Ela ouviu as lágrimas a cair no dia que a Maria se foi, levada. Ela sabia porque me carregou nove meses prenha! As mães passam os sonhos aos filhos, sabia?
José sabia…
- Foi nesse dia que me tornei viajante. Comia e dormia ao abrigo do céu. Quando não tinha que comer, pedia trabalho em troca de comida. Nunca quis dinheiro. Perguntava também se por ali era o caminho para o mar e, no embalo da conversa, perguntava se, lá na terra conheciam uma moça de olhos infindos chamada Maria de Luz. O pessoal gozava, coitados. Pensavam que cá o maltês era mais um doido…. E não se enganavam!
- Andei muito. Passei por terras que não lhe aprendi o nome, vi mulheres que não me lembro do som da voz. Algumas eram bonitas sim, mas eu só via nelas a cara da outra. Andei nem sei quanto tempo. Sempre que sabia que a Maria podia estar numa direcção, era nela que seguia. Pensando que assim encontrava o mar. Enganei-me.
- Cedo descobri, que um homem sente no peito essas coisas, que á Maria jamais a encontrava e que também ela já me tinha esquecido. As mulheres são mais ariscas que os homens. Fazem a parte delas! Cedo se esquecem e nos desenganam. Olhe que eu já vi muito. Já vi mulheres fazerem um homem perder-se e acreditar que o céu é amarelo. Já vi mulheres jurarem a um homem amor eterno, somente para durar uma breve sopro de brisa. Acredite que lhe digo a verdade.
José acreditava…
- Como dizia, comi muito pão que Deus ou o diabo amassaram. Nunca pergunto quem faz o pão. Simplesmente o agradeço e sigo a minha vida, só e em paz. Sozinho não é bem, que eu cá guardo as minhas memórias. Um homem sem memória é um saco vazio, não presta. As memórias fazem-nos companhia sem nos trair. Falam connosco á noite quando mais ninguém o faz e entendem-nos porque sendo nossas têm outras almas á mistura. Eu guardo as memórias mais que nada. Andei muito por esse mundo. Ri e chorei. Por momentos, quando descobri, sentindo, que nunca mais veria a Maria, quando eventualmente me aqueci noutros corpos, que em mim se aqueceram também e me deixaram ao frio, lembrava somente do mar mas sabia que seria ele a encontrar-me a mim. E eu não fugiria!
- Um dia, andava eu a sentir a terra debaixo dos pés, quando dou de caras com o mar! Fiquei quieto e mudo. Acho que parei de respirar. Era tal e qual eu imaginava mas maior. Se tinha todas as lágrimas do mundo, então o mundo devia ser um desfazer de carpidamento. Digo-lhe que fiquei 2 dias só a olhar o mar…e a encher-lhe as marés.
-Hoje vivo por aqui e por ali. Não me encontro pois nunca me perdi. Não sofro como vocês da correria. Vou tomar uma sopa onde os meus amigos fazem o favor de ma dar. E vivo junto ao mar. Cada vez o vejo mais cheio o que só pode querer dizer que cada vez há mais lágrimas a chegarem-lhe. Quando for a minha hora, que já pouco tarda, vou lançar-me ás ondas e devolver-me ao criador. Assim se cumprirá o destino. Entende?
José entendia…
- Conto-lhe tudo isto porque sei que é um homem bom, vê-se nos olhos e porque lhe dou a única riqueza que tenho, as minhas estorias. Entrego-lhas para que pense nelas e lhes dê palavras como sei que sabe fazer. Assim, pensando nelas deixa a cabeça livre de outras tempestades… Olhe bem, tempestades vejo eu nas rochas. As ondas viram loucas quando lhes bate o vento.
Assim falou Joaquim! Depois levantou-se lentamente e dirigiu-se para a porta. José ainda retorquiu:
- Então e da Maria, da sua Maria?
- Essa memória não lhe dou, irá comigo para as ondas e vossemecê não precisa.... Digamos que nunca mais a vi nem soube dela…. Melhor assim! As mulheres só nos trazem problemas! Enchem-nos o peito como na maré-cheia e depois partem com os motivos só delas e deixam charcos de água podre entre as cicatrizes!
Assim falou Joaquim levando consigo, sabe-se lá que memorias mais.
José nessa noite adormeceu na sala embalado pelas lembranças deixadas pelo velho mendigo, que se misturavam com as suas num eterno bailado. De manhã acordou tonto de claridade e com as notícias do dia: “Idoso desconhecido resgatado sem vida ao largo”
Assim, quedou-se José sentado no sofá da sala segurando a velha fotografia em que estava, com os seus pais algures numa praia do sul. Na foto, o rosto entristecido de sua mãe onde sobressaía um olhar do tamanho do mar. Nas costas da foto uma legenda: “1968- Maria de Luz, marido e filho”.