sexta-feira, 12 de julho de 2013


Estava escrito nas estrelas ou outras cartas de marinhar. Nas essências do pensar e nos recantos escuros dos medos: teria de partir! Era esse o seu destino reencontrado, a sua vocação imposta. Partir!
Não era um partir qualquer. Era um partir sem destinos, sem vontades, sem rumos. Simplesmente um partir de quem cumpre, não o sonho, mas um pesadelo. Assim estava escrito! Assim se cumpria!
Tinha tido, por breves instantes, muito breves como convém aos instantes, a ilusão da chegada ao pomar das macieiras sagradas com seus ramos de prata. A ilusão tivera-a quando bebeu a água da fonte sagrada dos corpos. Aquela bebida de que são feitos os sonhos e se constroem os homens. Tinha pensado o porto de chegada, porto seguro, quando encontro a calma no mar límpido e castanho dos seus olhos, que o mar também pode ser castanho quando assim tem de ser.  Quando imenso e cristalino e profundo e misterioso e tantas outras coisas que não aprendera.
Tudo estava escrito contudo. Desde a bruma dos tempos. Tinha de partir.
Não mais valeria os tempos em que lançou ferro naquele peito, em silencio, sem gritos de anunciação.  Porque também a chegada estava escrita...desde a bruma dos tempos. Tudo está escrito! Tudo é escrito. Como se as palavras se nos moldassem os caminhos e a sua ausência fosse a verdadeira visão do deserto.
Já não importava mais que à memória, as horas ganhas ao tempo de solidão em silêncios gritados aos abraços. Em que aquele gosto doce se lhe colou ao corpo e á pele com seu. Em que o som dos gemidos se confundia com o gritos das gaivotas da praia e em que a seda daquele peito era uma extensão natural da sua mão. Já não importava que tivesse aportado, ancorado e naufragado e amado com os cincos sentidos do corpo mais todos os que a alma inventa. Tinha de cumprir o destino e partir.
Haveria de empacotar os despojos com o mesmo zelo com que, tantas vezes tinha empacotado a vida, naquela rotina que conhecia e que teimava em querer esquecer. Procuraria os mapas e instrumentos de navegar guardados algures debaixo da pele ressequidas de tantos sal...de tanta água. Haveria de se preparar pois tinha de partir.
Para o caminho não levaria mais que um punhado de sonhos que razão teimara em matar. Os que tinha conseguido salvar. Não mais que um ou dois para que o lastro se lhe não aumentasse a barca e se afundasse...mais do que necessário. Depois levaria também os unguentos e remédios para as cicatrizes da viagem e para aquela que tinha a forma de um beijo.
Assim estava escrito tinha de partir Não que o tivesse escrito ele. Não que o tivesse sequer sabido ler. Somente conhecia, com a mesma sabedoria de que são feitas as ilusões! Com a mesma dor de que é construída a saudade.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Uma carta...talvez

Olha,

Apetecia-me escrever-te mas foge-me a inspiração entre as palavras. Se assim é não deveria ter esta vontade mas, como sabes, nem sempre sou fácil de entender. Talvez por isso me auscultes a alma com esse teu olhar calmo de criança.

Se tivesse inspirado tentaria em vão escrever-te um poema sem rima, que para rima já basta o bater conjunto do nosso respirar quando o silencio toma conta do espaço, como que em respeito pelo amor que fazemos pela noite. Mas não sou poeta e as palavras não me saem ritmadas. Saem em espasmos de paixão borrando o papel. Alem disso não estou inspirado.

Se me inspirasse, talvez te contasse uma estória de uma menina e um menino, que antes de se tornarem, mulher e homem, obrigatoriamente como todos, andavam pelos campos roubando fruta em tardes de Verão. Falar-te-ia dos seus passeios pelas praias vendo as rochas e descobrindo cousas do corpo e do mar. Nas poças salgadas deixadas pelas ondas onde, de tanto se beijarem, salgaram a propria alma.

Contar-te-ia os tempos ocultos de espera tidos nos dias passados na ausência um do outro, e como um dia se retornaram e se olharam e reconheceram ainda crianças. Mas, de facto, não estou nada inspirado.

Sinto dentro de mim este vazio que não deixa fluir as palavras, os verbos e advérbios e tudo aquilo que usamos para comunicar o incomunicável, o simplesmente sentido. Mas se não se comunica, como podemos saber se é sentido? Porque só sentimos na medida em que nos damos e a nós retornamos feito eco. Sinto em mim este vazio de te querer escrever e não estar inspirado.

Não que tu não sejas, por si só, fonte de inspiração, não! Nada disso! Eu, é que, olhando-te, em pensamento, repouso em ti de tal modo que, de mim se escondem todos os modos de escrevinhar. Contemplo-te o olhar e os cabelos que me lembram as tardes á beira mar e, depois, sinto novamente o cheiro a maresia das ondas que rebentam na praia levantando a espuma. E assim me quedo contornando-te as formas do teu corpo vestido de seda.

Mas não, nada disso, hoje não estou inspirado, há dias assim! Nada a fazer!

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Incompletamente e breve estória

Queria contar uma estória. Uma estória breve. Eternamente breve e incompleta.

Era uma vez, que assim costumam começar as estórias, palavras feitas agulha de bússola ou porto de abrigo. Andava eu navegando cansado, buscando a estrela que já do firmamento tinha partido, quando desemboquei naquelas letras escritas algures no tempo. Não eram sinais vulgares mas escritos com a forma ténue dos afectos.

Segui-lhes o rumo, algures num qualquer Novembro, enquanto o inverno tecia seus dias frios e a chuva teimava em lavar a natureza. Dia após dia lhes segui as pegadas. Primeiro, a medo, que as palavras são seres fugidios, frágeis, sempre prontas a trocar-nos as voltas ao mínimo sinal de desvelo ou descuidado. Depois, fui-lhes ganhando o gosto e a confiança e aprendi a trocar com elas experiencias, risos e lágrimas. Com elas fui descobrindo novas areias e reencontrando as ondas que me levariam ao porto prometido. Não por elas, mas traçado pelo destino, feito agua e sal, que inundava o firmamento do olhos.

Um final de tarde, naquele crepúsculo que veste de gala os instantes eternos, desemboquei na cratera do vulcão de onde brotavam torrentes de lava em forma de letras. Não era já suficiente saber que existiam, ouvir-lhes o som rebentando nas areias como ondas de prata, não bastava olhar a lua e as estrelas sabendo que eram os astros, os únicos pontos que nos uniam. Tinha de lhes conhecer o olhar e sentir a pele, o estremecer dos músculos, que as palavras também têm corpo. O corpo com a forma de quem as guarda e, guardando pare, não raras vezes, com pranto e sangue.

Simples, de sorriso fácil, tremula. Seguramente tremula e de olhar feito planície em dia quente de Verão, perdido em súplica inconsciente, de quem pede um abraço. Tinha a singela forma de uma ninfa a cor do alabastro e nos cabelos as mesmas cinzas onde tantas vezes haveria de renascer e amortalhar. Ali estava, perante mim, encontrada e perdida. Assim era!

Desde esse dia percorremos juntos caminhos. Uns áridos, outros de escolhos e de madressilvas e flores silvestres, guiados quase sempre pelas mesmas palavras que trocámos. No mesmo instante em que nos encontramos…e nos amordaçamos.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

A-Mar

José dedilhava os dedos pelo computador como se de um piano se tratasse. As notas feitas palavras passavam á sua frente ao ritmo suave da escrita. Bastava-lhe não pensar e somente escrever. Sem nexo nem destino como, muitas vezes, tinha sentido a sua vida, as frases iam discorrendo dos dedos.
Tinha chegado ao fim daquele dia cansado, só e vazio. Percorrera em vão as ruas da cidade grande em busca de trabalho. O sustento, que a crise apregoada, lhe roubara meses antes e, com ele a esperança e a dignidade. Estava cansado dos olhares condescendentes e inúteis, das negativas piedosas e dos telefonemas do banco clamando pelo sangue seco das suas finanças. Simplesmente escrevia linhas em desalinho e acordes em desacordo.
Ao longe, na noite, um cão ladrava seus lamentos. E José tinha por companhia o grito mudo dos seus pensamentos, das suas longínquas ilusões desvanecidas e a nostalgia de mil tempos perdidos. Encontrava-se ele mesmo perdido dedilhando letra após letra, enchendo a página sem qualquer tipo de sentido.
Tocaram á porta. É curioso a fragilidade do silêncio que se quebra com o simples premir do botão. É como se todo o mundo desandasse ao simples soar da campainha. Vem-nos toda a realidade como que sob a intensidade de um trovão. Uma campainha invade-nos, mutila-nos viola-nos ou enche-nos de esperança.
Era o mendigo que tinha por habito candidatar-se aos espojos do jantar ou melhor, ao prato que já sabia ser-lhe destinado, o Sr. Joaquim. Fazia questão de o tratar pelo o nome e pela deferência que as sujas brancas barbas lhe davam por direito. Fazia questão de recordar-lhe que os contratempos do destino não lhe retiram a identidade. A mesma identidade que, um dia o embalaram, bebé; no colo terno de sua mãe.
-Ah, Sr. Joaquim! Boa noite, entre – exclamou entre o misto de desalento pela solidão perturbada e o prazer daquela companhia de desventura – já lhe ponho a mesa.
Todas as vezes fazia questão de o sentar na sua mesa. Era o modo de lhe retribuir a companhia e apaziguar a culpa que, invariavelmente sentia, ao vê-lo partir para o rumo incerto dos mendigos. Sempre assim tinha sido, que a comida come-se á mesa e não sentado na soleira fria da porta. Nem aos animais abandonados, que o honravam com a sua escolha para que lhes aliviasse a fome, ele lhes destinava tão vazio lugar. A soleira, dizia, era para quem estava de passagem, e quem lhe lançava um pedido era porque reconhecia nele um amigo, e aos amigos, franqueamos-lhes a porta e a alma com os seus lamentos.
- Boa noite Sr. Zé. Deixe de se perder em incómodos. Eu como mesmo por aqui – disse com a humilde gratidão que o vestia. Não se habituara ainda aquele tratamento familiar.
- Ora, já sabe como é…aqui come-se á mesa e hoje, se não se importar, faço-lhe companhia.
- Tem piada o Sr. A casa é sua, faz o favor de me dar o que tem e ainda supõe um incomodo estar aqui ao pé deste seu criado?! – Retorquiu o velho com os olhos quase rasos de maresia. Notava-se-lhe que ainda lhe restava uma réstia de orgulho que ia sucumbindo á necessidade de pedir.
- Deixe-se de lamentos. O Sr. não é criado de ninguém! Aqui é um amigo, talvez o único que me vai aparecendo... – Disse numa surdina mais pensada que realizada…
- Está mau tempo por estes lados…- lançou em jeito de piada.
- Como assim?! – Perguntou José enquanto servia ambos do frango deixado pela empregada e de um copo de vinho. – Até tem feito bom tempo. O Verão é que teima em não decidir se fica.
- Não falava do tempo lá fora mas da intempérie que vai por esse peito a dentro - retorquiu naquele tom de pretensiosa despreocupação que esconde todas as certezas que somente a idade traz.
- Como assim – Atirou Jose tentando fugir á dura realidade da sua transparência.
- Ora vê-se até aos olhos de um cego que o meu bom amigo não está nos seus tempos –. Exclamou com disfarçavel preocupação enquanto se servia de um copo de vinho.
- Ora... nota-se muito?
António respondeu-lhe com aquele silêncio sábio dos velhos do destino, continuando a comer, que a fome não se compadece de filosofias. É uma criança mimada que reclama ser satisfeita no imediato. Assim são as fomes do corpo e da alma…as segundas mais impacientes que as primeiras.
Terminou de comer e tornou a encher o copo. Olho para o fundo dos olhos de José e ai se deteve. Um homem pode saber muito do outro olhando-lhe pelos olhos adentro. Conduzem-nos invariavelmente para os labirintos poeirentos da humanidade, transportam-nos para lá da realidade, para essa metafísica que nos sustem por dentro, como se de um outro esqueleto se tratasse e se nos transborda pelo olhar. Por isto não devemos deter-nos muito tempo nesse lugar onde somos estranhos e intrusos. Não aconteça encontrar nesses outros olhares, os nossos próprios medos, as nossas mesmas assombrações. Decidiu, por isso quebrar o silêncio.
- Amigo, há quantos anos nos conhecemos? – Perguntou.
- Sei lá…uns 3 anos talvez – Respondeu.
- Pois há tempo suficiente para que lhe conte de mim. Para um homem é bom, de tempos a tempos contar de si. Falando, evitamos que nos esqueçamos até do nome e das cicatrizes que temos agarradas á carne. – Disse bebendo um gole de vinho.
Nesse momento José reparou que, ao longo daqueles anos, noites seguidas, tinha-se limitado a franquear as portas aquele velho mendigo de uma dignidade esbatida pelo tempo mas não perdida. Nada, para alem do nome, sabia sobre ele. Nada daquelas coisas que fazem dos homens ilusoriamente mais homens: idade, nascimento, etc.
- Aqui onde me vê – Começou – já perdi a conta á idade. Acho que tenho uns 70 anos, mais dia, menos dia, que as contas perdem-se com os tempos. Não interessa! Nasci algures no Alentejo, num lugar onde a fome fazia escola e onde as crianças já nascem homens. Duros tempos aqueles! A minha santa mãe, pariu-me durante a ceifa, debaixo de uns arbustos que ali nasciam. Assim comecei logo a dar despesa. Como não pode trabalhar mais durante 3 dias, o cabrão do maioral não lhe pagou a jorna, o filho de uma grande puta! Desculpe a linguagem mas essa ficou-me atravessada quando ma contaram. Também quis o destino que é o mais justo dos juízes, que o ventre da mulher se secasse e nunca tenha deixado geração. Ou o ventre ou os tomates, tanto faz.
Parou para tomar um gole de vinho e continuou:
- Pois como lhe dizia, fui parido no campo. Eu e todos os da minha idade. Eram tempos de miséria…O meu pai guardava o gado da herdade e a minha mãe lá ia ceifando no tempo, ou servindo na casa sempre que era preciso. Eu, mal pus os pés no chão e as canetas sustiveram o peso do corpo, mandaram-me ajudar o meu pai. Tinha 6 anos! – Os olhos brilhavam-lhe como dois luzeiros. A memória acende os olhos, enche-os de mar.
- Mas os meus pais, que Deus os tenha na Sua paz, queriam que eu tentasse saber um pouco mais do que eles, o que não era difícil pois não conheciam uma letra. Falaram com o padre da terra, o Padre Alfredo, um homem do norte que tinha tanto de besta como de compaixão. Era um bom homem, ou boa besta se quiser. Estou a cansa-lo? – Perguntou a medo.
Que não, respondeu José, que continuasse. E serviu os dois de mais um copo de vinho. No fundo a curiosidade sobre aquela alma ia-se desvanecendo á medida que ia crescendo, num terminavel ciclo.
- Pois, continuando. Falaram com o Padre para que me ensinasse ao fim do dia um pouco de religião disfarçada de letras ou ao revés, tanto faz. Para o que eu haveria de estar guardado…. Sabe? As letras são coisas traiçoeiras. Um homem não dá por elas mas elas dão por nós. Quando as conhecemos, começamos a formar palavras e aprendemos que o mundo é mais mundo que suponhamos. As palavras mostram-nos que há mais terra para alem do horizonte da herdade dos Almeidas. Que podemos amar uma mulher pelas palavras que lhe escrevemos, ou pelas que deixamos de escrever… E podemos sentir tristeza pelo mesmo motivo.
- Foi assim que aos pouco, sem me dar conta me fui desgraçando com as palavras. Um dia descobri a que me haveria de transformar a vida. Sabe qual foi?
- Não – Respondeu José.
- Mar! È verdade! Mar! Um dia o Padre pôs-me a palavra á frente e pediu que a soletrasse: M-A-R. Lá disse eu a medo. As outras coisas que lia ainda sabia o que eram, a foice, a ceara, o burro, a ovelha, a flor, etc. mas mar?! Isso eu não sabia! O homem que era viajado e vinha lá de um lugar chamado Povoa do Varzim, explicou-me o que era o mar. Mais valia tivesse ficado mudo nesse dia!
- Explicou-me que o mar era assim como um charco que a chuvas de verão fazem mas muito maior, que era tão grande que nele cabia todo o peixe do mundo, que era tão grande que não se supunha ter fim. Falou-me que os homens amam o mar, e eu pensando que o que eles amavam eram as mulheres….que não, disse o padre. Que amar, ama-se o mar. por isso se diz a-mar. As mulheres, deixam-nos e dão-nos vazios e silêncios. O mar enche-nos e as ondas voltam sempre e falam coisas ao ouvido das gentes.
- Assim me falou, o raio do Padre, do mar… Disse que o sal era sagrado, porque estava presente no mar e nas lágrimas. Por isso, acreditava ele, que Deus era pescador e que, quando fez os homens, estava numa barca e colocou-lhes água do mar nos olhos para, quando chorassem, se lembrassem sempre da imensidão que existe em cada um. Que a imensidão do mar era maior que olhos da Maria de Luz. Quando lhe perguntei de onde vinha tanta agua assim, ele respondeu “ora rapaz, está bem de ver, são as lágrimas que correm sempre para o mar, como os rios, por isso é que o mar é salgado, porque lhe devolvemos a agua, quando choramos” Assim me falou ele do mar…
- Acho que o padreco era meio doido mas sabia das coisas. Dali saí com a certeza na alma que tinha de ir ver o mar mais, saí sabendo que só no mar eu seria homem inteiro. Saí daquele dia, do baixo dos meus 10 anos, com a jura, jurada que iria…a-mar. Foi nesse dia que me tornei maltês!
José mal acreditava no que escutava! Aquele mendigo, sujo e esgotado, encerrava em si uma sabedoria nobre. Nunca o tinha imaginado para alem do pobre que lhe batia á porta de tempos a tempos. Nunca se tinha interrogado quem era aquela alma. Sentia-se culpado por isso.
- Pois nesse fim de tarde entrei em casa e disse aos meus pais que ia ver o mar! Que o mar era maior que os olhos da Maria de Luz. A Maria era a moça mais bonita da aldeia. Todos a queriam namoriscar, mas diziam que a magana se lançava de olhares cá para o meu lado. Eu não era mau pedaço mas a Maria…. Ah moça de linda. Tinha uns cabelos de oiro e uns olhos que eram maiores que a seara grande da herdade. Juro! Que morra já aqui!!! Eu gostava da moça mas ela era de gente fina. A mãe era professora e o pai era comandante da guarda. Eu queria aprender as letras para lhe escrever coisas. Queria ser alguém, entende? Mas aquele dia mudou tudo! Um dia que começou com as palavras que se desconhecem e nos rasgam o entendimento. As palavras podem mais que isso a que chamam de amor, sabia? Por isso lhe digo, amigo José, não se perca de amores pelas palavras.
- Os meus pais riram-se, claro. A minha mãe agarrou-me no peito e perguntou-me o que era isso do mar. Acho que foi mais para me proteger do estaladão que pronto vinha da manápula do meu pai. Ele não achava lá muita piada ás minhas descobertas. Dizia que ainda me secava o cérebro, tanto saber. Que para guardar as ovelhas dos Almeidas não era preciso tanta sabedoria, e que se queria ver muita água, levasse mais vezes as ovelhas para beberem na barragem…
- Claro que eu pensava na Maria. A moça era o meu encanto e, apesar de ser novo, já tinha crescido o suficiente para as pernas me tremerem quando passava. Como era filha da professora cedo aprendeu a ler. Ela, de certeza já sabia do mar. Eu era moço mas já sabia o suficiente para querer que ela viesse comigo. Haveríamos de ver o mar juntos! Tinha só de esperar o tempo bastante para que ela se crescesse mais um pouco e então saímos os dois. Era assim que eu acreditava. Tinha de lhe falar, pensei eu.
- Três dias depois de ter aprendido sobre as águas, estava eu á beira da estrada com o meu pai e as ovelhas quando parou um automóvel ao pé de nós. Era a Maria e os pais. Ela nem me olhou de dentro mas vi que, daqueles olhos saia tanta agua que só podia o padre ter razão. Deus pôs o mar dentro de nós para o chorar-mos. O pai dela, acenou ao meu e disse-lhe que se iam embora da aldeia. O tipo era da guarda, tinha sido colocado noutra terra e levava a família a reboque. Estupor do homem! Desde esse dia que não posso com guardas. Dão-me um azar…. E lá foram estrada a fora com a Maria e o irmão mais novo. Esse também… Nunca lhe ouvi uma palavra. Dizia-se que passava as tardes a ver os pássaros da gaiola e a ouvir rádio…. Enquanto a Maria ouvia as estorias na oficina do sapateiro. Não sei! Só sei que nesse dia entrou-me a maré cheia nos olhos. Quando cheguei a casa jurei que ia partir para ver o mar e encontrar a Maria de Luz!!! Jurei com todas as ondas que chorei nessa noite.
- Passaram dois anos e eu continuei a guardar ovelhas e sonhos de a-mar. Sim, sonhos de sair. A aldeia já era pequena. Não vou dizer que não tenha arranjado os meus namoriscos, que um homem não é de ferro e a carne pede-nos aconchego. Mas nunca deixei de pensar na última imagem da Maria. E quanto mais pensava mais sabia que tinha de ir procura-la e, quanto mais pensava, mais sabia que a encontrava junto ao mar.
- Um dia peguei na trouxa durante a noite e parti! Foi a segunda vez na vida que senti o sal na cara. Deixei a casa e sabia que a minha mãe quando acordasse ia sentir a minha falta. Queria ter dito adeus mas, se o fizesse era pior. Lancei-me ao pó da estrada e, ao virar da ultima curva virei-me e vi, á porta da casa, a minha santa mãe acenando-me num gesto que ainda hoje não sei se era de bênção ou despedida. Ah, ela sabia, desde aquela noite que o meu destino estava traçado. Ela ouviu as lágrimas a cair no dia que a Maria se foi, levada. Ela sabia porque me carregou nove meses prenha! As mães passam os sonhos aos filhos, sabia?
José sabia…
- Foi nesse dia que me tornei viajante. Comia e dormia ao abrigo do céu. Quando não tinha que comer, pedia trabalho em troca de comida. Nunca quis dinheiro. Perguntava também se por ali era o caminho para o mar e, no embalo da conversa, perguntava se, lá na terra conheciam uma moça de olhos infindos chamada Maria de Luz. O pessoal gozava, coitados. Pensavam que cá o maltês era mais um doido…. E não se enganavam!
- Andei muito. Passei por terras que não lhe aprendi o nome, vi mulheres que não me lembro do som da voz. Algumas eram bonitas sim, mas eu só via nelas a cara da outra. Andei nem sei quanto tempo. Sempre que sabia que a Maria podia estar numa direcção, era nela que seguia. Pensando que assim encontrava o mar. Enganei-me.
- Cedo descobri, que um homem sente no peito essas coisas, que á Maria jamais a encontrava e que também ela já me tinha esquecido. As mulheres são mais ariscas que os homens. Fazem a parte delas! Cedo se esquecem e nos desenganam. Olhe que eu já vi muito. Já vi mulheres fazerem um homem perder-se e acreditar que o céu é amarelo. Já vi mulheres jurarem a um homem amor eterno, somente para durar uma breve sopro de brisa. Acredite que lhe digo a verdade.
José acreditava…
- Como dizia, comi muito pão que Deus ou o diabo amassaram. Nunca pergunto quem faz o pão. Simplesmente o agradeço e sigo a minha vida, só e em paz. Sozinho não é bem, que eu cá guardo as minhas memórias. Um homem sem memória é um saco vazio, não presta. As memórias fazem-nos companhia sem nos trair. Falam connosco á noite quando mais ninguém o faz e entendem-nos porque sendo nossas têm outras almas á mistura. Eu guardo as memórias mais que nada. Andei muito por esse mundo. Ri e chorei. Por momentos, quando descobri, sentindo, que nunca mais veria a Maria, quando eventualmente me aqueci noutros corpos, que em mim se aqueceram também e me deixaram ao frio, lembrava somente do mar mas sabia que seria ele a encontrar-me a mim. E eu não fugiria!
- Um dia, andava eu a sentir a terra debaixo dos pés, quando dou de caras com o mar! Fiquei quieto e mudo. Acho que parei de respirar. Era tal e qual eu imaginava mas maior. Se tinha todas as lágrimas do mundo, então o mundo devia ser um desfazer de carpidamento. Digo-lhe que fiquei 2 dias só a olhar o mar…e a encher-lhe as marés.
-Hoje vivo por aqui e por ali. Não me encontro pois nunca me perdi. Não sofro como vocês da correria. Vou tomar uma sopa onde os meus amigos fazem o favor de ma dar. E vivo junto ao mar. Cada vez o vejo mais cheio o que só pode querer dizer que cada vez há mais lágrimas a chegarem-lhe. Quando for a minha hora, que já pouco tarda, vou lançar-me ás ondas e devolver-me ao criador. Assim se cumprirá o destino. Entende?
José entendia…
- Conto-lhe tudo isto porque sei que é um homem bom, vê-se nos olhos e porque lhe dou a única riqueza que tenho, as minhas estorias. Entrego-lhas para que pense nelas e lhes dê palavras como sei que sabe fazer. Assim, pensando nelas deixa a cabeça livre de outras tempestades… Olhe bem, tempestades vejo eu nas rochas. As ondas viram loucas quando lhes bate o vento.
Assim falou Joaquim! Depois levantou-se lentamente e dirigiu-se para a porta. José ainda retorquiu:
- Então e da Maria, da sua Maria?
- Essa memória não lhe dou, irá comigo para as ondas e vossemecê não precisa.... Digamos que nunca mais a vi nem soube dela…. Melhor assim! As mulheres só nos trazem problemas! Enchem-nos o peito como na maré-cheia e depois partem com os motivos só delas e deixam charcos de água podre entre as cicatrizes!
Assim falou Joaquim levando consigo, sabe-se lá que memorias mais.
José nessa noite adormeceu na sala embalado pelas lembranças deixadas pelo velho mendigo, que se misturavam com as suas num eterno bailado. De manhã acordou tonto de claridade e com as notícias do dia: “Idoso desconhecido resgatado sem vida ao largo”
Assim, quedou-se José sentado no sofá da sala segurando a velha fotografia em que estava, com os seus pais algures numa praia do sul. Na foto, o rosto entristecido de sua mãe onde sobressaía um olhar do tamanho do mar. Nas costas da foto uma legenda: “1968- Maria de Luz, marido e filho”.

terça-feira, 7 de abril de 2009

Irracionalidade racional

“Alguém disse uma vez que no momento em que paramos a pensar se gostamos de alguém, já deixámos de gostar dessa pessoa para sempre”
Carlos Ruiz Zafon in “A Sombra do Vento”

Mostra o escritor a essência da irracionalidade humana. No fundo, se cumprir-mos com a nossa humanidade, somos animais irracionais. Irracionalmente gostamos de quem não sabemos distinguir a razão objectiva do nosso afecto. Quantas vezes se fundem pensamentos inconscientes por algo ou alguém, sem que lhe reconheçamos merecedores de a energia de pensar? Quantas ocasiões nos perdemos em desvarios de mente (e dementes…) sem saber a razão de tal modo. Gostamos e pronto! E deixamos de gostar no preciso momento em que, no laboratório dos afectos ensaiamos a razão dos mesmos!
Gostar é não pensar, é somente sentir. Sentir a brisa no beijo anunciado ou no calor das mãos que se entrelaçam, o mesmo olhar fixo naquele por do sol que nos aquece os sentidos. É não pensar senão na alma que se renova nos encontros não adiados.
Não se pensa quando se olha aqueles olhos que nos pedem um abraço ou quando miramos atentamente a gota de orvalho que se nos cai na mão.
Não nos peçam pois a nós, seres irracionais, que desvendemos os manuais que o coração segue quando se perde. Não os conhecemos, e conhece-los é eternamente descurar as linhas com que se escrevem porque não se escrevem, sentem-se sem pensamentos de supostas realidades mentais.
Não procurem razões para esta animalesca realidade a única razão é não pensar!

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Doença

Muito mata um coração empedernido! É patologicamente diagnosticável pela completa falta de vontade de se abrir á humana vontade de se amolecer ao passar de um abraço. Seca os sentidos e deixamos de ver, ouvir, sentir… morremos apodrecendo pouco a pouco.
Está comprovado que um coração que não bate de paixão não bate de vida, perdendo-se nos caminhos ténues da morte. Morte em vida andada, em vida que ao ar rouba o respiro.
Hoje perdemo-nos perdidamente nos caminhos obscuros que o tempo amortece. Não queremos mais saber de abraçar. Vive-se a aurora esquecendo o por do sol. O agora sem a esperança que espera o amanhã com a alma em desatino. Não se cometem loucuras por paixão, simplesmente porque não está na moda, porque é ridículo sorrir com cara de parvo, ser ciumento ou chorar de ausência. Vive-se amores fast-food de consumo rápido, com elevados níveis de colesterol sentimental que se nos atrofiam as veias e nos atrasam o bater da alma.
Um amor quer-se sentido e lento, de digestão pausada. Repleto de fibras e com muito exercício. Um amor quer-se para um coração que nos palpite em cada veia.
Um amor exercita-se dos gritos mudos que amolece o coração e o faz bater na fímbria do desejo e no ritmo lento dos dias. Ah, nada mais mata que veias cheias de placas de beijos por dar e risos mudos e loucuras não cometidas.
Não venham pois com doenças criadas e registadas em livros de criar pó. Morre-se mais de tristeza e solidão que de cancro ou sida. Morre-se mais mal amado que de cólera. Morre-se mantendo a triste aparência da vida que se perde dia a dia.
Urge pois um novo batimento cardíaco que não engula um choro nem recuse um mimo. Que não mais se sucumba de espera calada, amordaçada porque, está definitivamente provado, nada mata mais que um coração empedernido.

quarta-feira, 18 de março de 2009


Já ao longe se ouvia o comboio. Incólume ao facto, continuava Joana sentada sentindo-se só, incompreensivelmente só.
Tinha tomado para si mesma a decisão de partir, nada mais lhe restava depois de desfeito o sonho e ter constatado que os últimos tempos tinham passado ao ritmo intenso do seu desejo. Nada lhe restava para além da mala que jazia a seus pés onde estava guardado o seu parco mundo: uma muda de roupa e meia dúzia de objectos de higiene pessoal e um livro. Estranho como os livros são os mais fiéis companheiros de viagem, de partidas e de chegadas. Eles encerram a nossa alma e a ela transmitem uma fantasia que, mais tarde, nos vai atraiçoar, dando-nos de beber o doce veneno do sonho. Sonhamos que a vida se traduz nas palavras sentidas, sonhamos…
Joana esperava o comboio anunciado, de olhos presos no vazio das gentes daquele fim de tarde, escutando os incompreensíveis sons da gare. Era o seu modo de estar sozinha, de conseguir pensar na sua própria ausência de pensamento. Desconhece-se se aquele olhar preso no imaginário infinito dos carris seria a busca do novo destino.
Tinha acordado naquele dia solarengo de primavera, com a luz estampada no rosto. A seu lado, estendido despreocupadamente dormia o companheiro. Gostava de dispensar algum tempo a olhá-lo enquanto dormia. Dispensar esse tempo era, isso mesmo, não pensar, simplesmente olhar. Muito tempo perdemos nós na correria atrás do tempo que indubitavelmente nos foge sem parar para dispensar, somente, dispensar nossos sentidos em algo de belo. Hoje pouco se dispensa, só pensa.
Gostava de olhar aquele corpo onde se entregava em horas de prazer. Não pela física entrega mas por sentir que nele plantava o mais próximo de si. Nele sentia que fazia sentido a espera dos anos em provação. Gostava de o imaginar velho mas feliz numa qualquer cama de um qualquer lar chamado em comum. Gostava de o imaginar seu do mesmo modo que se sentia sua, mesmo nas horas em que, conscientemente sabia que nada possuía para além da mala que jazia agora a seus pés. Vivemos anos a construir matéria que acabamos por deixar espalhada nos recantos da vida. Viajando sempre agarrados a cousas simples, lembrando o quão simples a vida se nos oferece. Tudo para um dia entendermos que nada possuímos que não caiba numa simples mala, numa complexa alma de lama.
O seu homem, como gostava de o chamar pela verbalização do sentir, tinha-lhe lembrado sem palavras a inevitabilidade da paixão quando as vontades se reencontram. A seu lado tinha redescoberto o doce sabor do querer e acalentado a esperança num qualquer futuro. Tinham sabido partilhar as almas e os corpos ao ritmo das palavras e, ela, sentia o final do caminho da espera. Assim o pensava, assim o queria sem saber que os sonhos são pessoais e intransmissíveis. Os sonhos são a voz da alma que nos grita em loucura, o desejo. Quantos sonhos se quedam mortos, irremediavelmente mortos na nossa memória?
Tinham-se encontrado num fim de tarde num café da cidade grande, no meio de todos quantos na cidade se perdem, eles, contrariando, descobriram-se e cresceram. Não eram jovens mas sedentos de sonho e afecto. Nesse mesmo momento, as suas bocas uniram-se selando num beijo o que as palavras não sabiam dizer. Assim foi e assim se cumpriu a profecia íntima de cada um. Sim, todos nós temos uma profecia que se nos escreveu o Universo no momento em que decidimos chegar. Abrimos os olhos e começamos a escrever o guião nas páginas, previamente alinhadas, da nossa vida. Até ao dia em que lemos todo o texto, no derradeiro acto a que nos dirigimos ou desejamos!
Com ele tinha sorrido das flores e das realidades, tinha caminhado ao pôr do sol e, ilusoriamente, pensava ter chegado ao porto da vida onde os cais são feitos de pedra e sorrisos. Com aquele homem tinha experimentado o esquecimento caminhante de outras vidas e a surpresa constante das chegadas.
Agora encontrava-se somente só naquela estação de fim de tarde onde as gentes apanhavam o destino mundano rumo a vidas escritas e, quem sabe partilhadas. Todos sabemos como as estações são momentos de partida sem chegada. Uns partem no comboio, outros partem chegando.
O comboio acabara de entrar com estridente anúncio na gare. Joana nem por isso se moveu. Não tinha a certeza de partir nem a satisfação de chegar, somente estava depois de ele lhe ter dito que nada era certo e que somente nele se revia e encontrava. Tinha-lhe feito sentir que ela, que nada mais ambicionava que as amarras do navio, nada mais representava que um apêndice na sua vida. Importante talvez mas um post scriptum no vagar dos dias, deixando-a perdida sem rumo, restando a ilusão de um dia o ter tido. Tinha pegado nos parcos haveres e tinha, em silêncio partido para a gare onde a máquina a levaria para longe de tudo e para perto de si. Fosse lá onde fosse!
Tinha recusado as chamadas e apelos! Agora estava preste a fazer de si eremita de viagem, com outros tantos. Olhava os carris paralelos que se haveriam de unir naquele mesmo infinito onde desejava chegar. Bilhete na mão e alma posta na incerteza do silêncio.
Queria sentir de novo o desejo alheio. Sentir o seu calor e aquele abraço de noites de chuva. Queria ouvir gritar seu nome do outro lado da gare e um pedido de abraço feito. Queria novamente sentir ser possível falar sendo escutada. Nada mais queria que o seu corpo em profundo silêncio gritando-lhe palavras recusadas anteriormente. Somente queria o confirmar de uma boca que, de si, tomava a vida em goles de satisfação. Queria ser parte dos que com ele partilhavam o sentir diariamente. Invejava-lhe os amigos que, ao fim do dia, entre uma cerveja, lhe escutavam a alma e a quem ele sabia escutar os sentimentos. Queria que aquelas lágrimas caíssem no seu peito e não no granito frio do passeio. Queria somente escutar seu nome!
O último aviso de embarque no comboio rumo ao destino traçado. Ultima oportunidade de, pouca-terra, pouca-terra, ser muito espaço. Nunca lidara bem com desconhecidos silêncios e ausentes desejos. Sempre tinha apregoado a força que agora mesmo lhe faltava para subir a máquina. Não era falta de força, contudo, era esperança…
O comboio partiu em mútuo alheamento. Ela, dele ignorado e para ela, ele recusado. Olhou a fria estação, sob o manto de duas grossas lágrimas de mágoa. Esperaria! Não um novo comboio mas, a figura fantasma de um abraço que a levasse a casa.