terça-feira, 18 de novembro de 2008

(Des)Conhecida

Tinha nos olhos escuros aquele grito de desespero dos marginalizados. No corpo, a fraca figura em que os cabelos revelavam o desalinho da sua própria alma. Como se chamava ou simples timbre da sua voz, desconheci e não importava. Estávamos os dois no mesmo tempo e no mesmo espaço, separados por diferentes realidades e mesas do café do parque da cidade grande.
Eu tinha chegado á pouco e vinha encontrar-me com uma amiga comum de um poeta maior do outro lado do mar. Sozinho, enquanto esperava, deambulei os olhos pelo espaço, repousava-os nas árvores do parque, invejando-lhes a calma e as raízes que as unem á madre terra.
A minha volta, conversas fúteis e alegres e sérias daquele princípio de tarde. Tudo era calma e desconhecido. Esperava, nesta observação de carrego como hábito desde que me conheço. Assim creio poder ter a ilusão de conhecer a alma alheia. Como o vampiro que espera enaltecer a sua própria metafísica com a metafísica alheia, bebendo experiências adivinhadas no simples modo de olhar ou falar. Sempre o fiz e sempre achei ir reconhecendo alguma humanidade á minha volta. Sempre o fiz e muitas vezes me desiludi por isso, não desisto.
Ela entrou e pediu um café. Ao passar na minha mesa encontrei os seus olhos gritando algo, que não soube decifrar, á invasão consciente dos meus. Trazia, numa mão o café e, na outra, a desistência de ser alegre. Corpo franzino e aprumado. Não era uma dessas que dorme nos bancos frios ou nas ombreiras das portas, reclamando um pedaço de pão. Não, não era alguém assim. Talvez somente alguém triste. Tentei adivinhar-lhe as estórias. Quem sabe um desespero de saúde ou um mal de coração, desconheço e desconhecerei sempre.
Sentada numa mesa próxima, falava e sorria sozinha, timidamente como se o medo a invadisse. O medo de que seus segredos fossem descobertos. O olhar fixava o fundo da chávena de café quente, como tentado adivinhar o inexistente futuro, nas borras ausentes. O cabelo coroava-lhe o aspecto em desalinho e sujo dando-lhe uma imagem de fantasma cosmopolita que, desafiando as leis místicas, tinha saído á luz do dia
Sorvia o café e fumava o cigarro em lentos travos, onde o tempo nada mais nada traduzia que o fumo esvaindo-se no ar. Tudo ao seu redor era, para ela ausência. Somente os meu olhar que a invadia tentando adivinhar-lhe o destino ou a sua ausência.
Nestes breves instantes, tentei adivinhar-lhe o nome a estória. Queria saber quem a tinha um dia amado, o que tinha imprimido a loucura no olhar, o simples desespero de um vazio não pedido em vão! Bastava-me a sensação provocada e o silêncio ensurdecedor do seu grito que, sem saber, invadia aquele café. Estava simplesmente ali, despojada de tudo e ausente num mundo inacessível, ao alcance de quem se dignasse olhar, ver…
Por fim lá se levantou com os mesmos gestos lentos com que palmilhava os caminhos do parque buscando, na terra, a vida que o ar parecia lhe recusar. Vi-a afastar-se pelos caminhos com passos estudados, com aquela fraca figura de menina que outrora foi (sim que todos nós um dia, um momento, um simples instante, fomos crianças)
Quem era não sei. Ficou somente a imagem daquele olhar aflito. A cidade está repleta de seres que nos oferecem assim, a sua própria humanidade.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Gostos

Gosto do lento beijar! Da metamorfose das línguas que se entrelaçam num eterno bailado, bebendo de cada um o sabor terno da paixão, o quente do desejo. Gosto, que fazer?
Gosto do tempo que para nesses instantes em que os cheiros se misturam e os corpos se moldam e percorrem em gestos que desafiam os minutos. Os braços que se fundem no eterno bailado ao ritmo cadenciado das ondas ou ao som místico da chuva.
Sei que sou um idealista. Hoje, poucos perdem tempo nessa loucura que é a paixão. Quase ninguém já faz loucuras por amor. Os dias correm depressa demais e somos escravos da razão que nos automatiza. Não se sabe mais reconhecer num silencio do olhar, por tempos infinitos.
Pergunto-me onde está a essência humana que nos revela nos espasmos de um corpo, não um prazer mas uma entrega, não o físico prazer mas a alma partilhada. Onde se encontra o gesto não estudado e o amor que, mais que feito é construído?
Gosto da penumbra dos espaços em que se bebem vidas de livre escolha, presas ao universo construído e á loucura que nos prende. Onde está a ausência de distancia que os dias nos impõem? Gosto desse sabor íntimo, que fazer?
Gosto de gostar mesmo que excluído das humanas intenções, que nos impõem a razão quando é a carne em chama viva que comanda.
Gosto de me sentir vivo e em paixão resgatado. O amor é feito de cheiro, silêncios e sabores. Feito de loucura sem mais razão que não seja o estar ali. O amor é feito de perdão, ciúme e fusão no corpo quente do ser amado. Quem me conta um gesto? Um orgulho amortalhado? Poucos!
Sei que sou um idealista, mas na vida, vivo apaixonado e ignoro outro modo, que não seja esse vulcão de desejo em que me entregue. Não gosto de metades, de migalhas oferecida em troca de mim. Gosto da vigília nocturna no império das paredes. Gosto da intimidade.
Sei que sou um idealista mas gosto!

Dia de Semana

Luis chegou a casa naquele fim de tarde cinzento, cor do aço que lhe atravessava o peito e lhe gelava a alma e os pés (todos sabemos quão os pés podem ser o termómetro das entranhas e mistérios mais profundos). Trazia consigo o silencio de mil pensamentos que o acompanhavam no seu caminho do escritório. Já não era ele que conduzia o carro, sentia que este já conhecia os sulcos da estrada como a vidente conhece as linhas do destino nas palmas da mão. Simplesmente ia, unicamente chegava num misto de desejo e cansaço. Aquele abraço sonhado que quase sempre tardava, aquela boca de sabor a mel onde certificava todas as suas hesitações. Encontrou-a passando a ferro como quem endireita os caminhos da vida. O cão, eterno amigo e fiel leitor dos espíritos, deu-lhe as boas noites como quem lhe oferece e pede o reconhecimento da irmandade.
Olhou-a nos olhos naquele fim de tarde pedindo um afecto, um silêncio no olhar que lhe sepultasse as duvidas. Aqueles olhos que, tantas vezes o tinham confortado e compreendido, aqueles olhos doces que sabiam mais da sua alma que ele próprio. Pediu com o silêncio oferecido somente o calor do seu corpo e a certeza da sua própria humanidade.
Ela olho-o e sorriu como o mar que quebrava perto, nas areias da sua praia onde tantas confissões tinham sido partilhadas em momentos de fim de tarde. Nada mais requeria que aquele lar reconstruído. Faltavam-lhe, contudo, as palavras.
Queria saber dizer-lhe o que lhe ia no peito. A paixão que lhe comandava o respirar, aquele imenso desejo de se libertar na prisão do seu corpo. Queria saber gritar o que o seu peito transbordava, mas faltava-lhe a gramática limitada no ilimitado sentimento.
Dizem que o amor é louco e cego, mas ele sentia-se lúcido e de boa saúde. Permitia-se as loucuras que esperava mas não sabia pedir. Queria sentir-se vivo mas não bebia dos lábios a fonte santa da juventude. Sabia que sabia mas ela negava-lhe a vida em sobressalto.
Pegou no seu leal amigo de todas as horas, deu-lhe um abraço como se fosse o ultimo da vida e partiu para o diário passeio, onde revelaria ao cão dela as palavras que por medo lhe negava, na vã esperança que ele, numa lambidela lhe revelasse.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Arvore de todos os Natais

Quando foi que construi aquela arvore de Natal? Foi há tantos dias que somente tenho na mão a marca eterna daqueles ramos partilhados. Foi há tanto tempo que nada mais passa que uma memória irrepetível e saudosa. Nada mais que um momento que se me cravou no peito como o espinho abençoado de uma rosa.
Foi num fim de tarde de um Sábado de Dezembro, algures num tempo que era Natal no coração das cousas e não só no calendário humano.
Como muitas vezes, subi ao sótão onde se guardavam as tralhas da vida. Aqueles entulhos a que nos apegamos inutilmente e aqueles que esperam a sua época de uso. Sempre me apaixonaram sótãos com os seus mistérios conhecidos, com as suas memórias guardadas. São como a face visível da nossa alma, dos nossos apegos humanos, o sinal empoeirado do passar dos dias. Nos sótãos podemos ser eternamente crianças e recordar esses tempos que jazem ali somente á espera de uma oportunidade de brincar connosco.
No canto do costume ali esperava a réplica artificial na forma, mas não na intenção, de um pinheiro nórdico. Olhava-me como que sabendo que tinha chegado o seu momento anual de glorificar a casa. Talvez também adivinhando que glorificaria também as mãos que o iriam tocar, que tocaria corações naquela tarde.
Quando entrei na sala já a musica das vozes de Viena tocava na aparelhagem como uma banda celestial dando as boas vindas ao ritual eternamente efémero que se iria concretizar, num quase silencio que somente gestos macios iriam quebrar.
Colocada estava a árvore nua no local onde abençoaria toda a sala, toda a vida, onde iluminaria todas as ilusões como se iluminasse também todo um futuro. È sabido o efeito mágico das árvores de Natal, com os seus poderes de transformarem em fartura a pobreza dos homens, de encherem de pão o campo e de esperança a alma de quem as admira. Assim seria aquela, assim o desejei com cada molécula do meu corpo, com cada gesto com que a vestiria de luz e cor. Assim o desejei naquele Sábado de Dezembro.
Pouco a pouco se cobriu a árvore de desejos e também de bolas e fitas de cores condizentes. Lentamente se iluminou, lentamente se cobriu de amor feito sob os seus ramos santos. Tudo feito como correspondendo a um livro de instruções não escrito mas ditado pelas mãos que a compunham, pela loucura dos beijos que a decoraram. Na aparelhagem cantavam as cândidas vozes indiferentes ao crepúsculo que caía lá fora ao ritmo que tudo se iluminava lá dentro.
Por semanas se manteve ali a árvore sorrindo como um novo membro da paisagem com a função de fazer das paredes um lar. Ali iluminou o dia a dia durante aquele tempo santo. Ali criou ilusões de eternidade. Ali lançou as raízes que a tornaram viva.
Todos os dias, ao chegar a casa levantava a mão para a cumprimentar mas, sobretudo para agradecer aquela presença que significava para mim a união das mãos que a vestiram, o amor selado sob os seus ramos. Para mim significava o Natal dos homens feito deuses.
Os dias foram passando com o seu ritmo normal e a árvore cumprindo com zelo a sua missão de ali estar, de lembrar o momento em que eu tinha subido ao sótão das memorias e fantasias de criança, para a trazer para o convívio de todos. Lembrava o momento em que, ao som da música, tinha sido construída como quem constrói sonhos e caminhos, bola a bola, fita a fita. Ali estava imponente na sua humildade procurando que eu aprendesse que, na vida nada mais somos que seres em bruto onde outras mãos nos vão vestindo. Ali ficou a árvore até ao dia, dito de reis, quando, por tradição não escrita, se recolhem os escombros das festas. Nunca entendi porque não pode a árvore permanecer o resto do ano, sobretudo se é sua função recordar. Anos depois criei o hábito de não desmanchar o presépio num misto de rebeldia e sentido de dever.
Árvore foi novamente levada para o local de pseudo esquecimento onde me esperaria no ano seguinte, com os seus ramos prontos a receber novamente os afectos depositados. Olhei-a e desejei-lhe bom ano agradecendo as lições e a oportunidade que me dera de a abraçar, desejando voltar a vesti-la de sonhos e prendas e luz.
Mas nós, homens, somos rápidos no esquecimento e fracos nas intenções. Somos lentos no compreender de cousas da metafísica dos gestos e influenciáveis pelo dia á dia e por quem povoa a vida de vazios e invejas. Somos infinitamente limitados e reduzidos a silêncios estéreis. Não mais sabemos cumprir com os desejos e promessas de tolerância. Somos rápidos a viver e a gelar corações que um dia colocamos numa árvore de Natal.
Não mais a vi. Nunca mais lhe pude agradecer e aprender com seus ramos a dádiva daquele abraço. Jamais voltarei a fundir o meu corpo sob a luz protectora dos seus ramos. Hoje talvez ainda esteja lá no sótão das memórias ou do esquecimento. Será talvez mais uma entre tantas. Certamente outras mãos e outros beijos a vistam longe da minha vista mas, no meu coração, descubro em cada dia, que continua armada e presente e só. Despida de cor esperando somente uma oportunidade de ver a luz do dia. A esperança que a vestiu naquele dia partiu com o vento de inverno e dia de Reis. Ficou o vazio e parte de mim iluminado pelos ramos cobertos daquela Árvore de Natal

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Ilha de Bruma

Subiu as veredas verdejantes com as certezas que se têm quando o sol nos acolhe e a vida nos sorri. Não se sentia Príncipe mas tão-somente aquele a quem tinha sido pedido um sorriso e um reencontro. Subia a ladeira observando o verde e as flores e as cousas que se lhe saltavam ao entendimento. Sentia-se há muito tempo parte daquela natureza, adoptado por ela e seu devedor enquanto hóspede da ilha. Sentia as suas gentes como a continuação da lenda que invoca místicos reinos perdidos e que ele teimava em encontrar.
O edifício ia surgindo pouco a pouco com a timidez de se impor na paisagem, como se dela não fizesse parte. Perguntou-se quantos pés tinham já subido aquele pequeno morro ignorando, pelo hábito de subir, toda a alva luz que no verde reflectia ou dele era emanada.
A porta principal aberta convidava á entrada. Não de um plebeu mas de uma corte não decadente. À falta de melhor opção decidiu esperar por ela naquele hall revestido de quadros que retratavam outras viagens de outros tempos, mal sabia o quão similar era a sua própria caminhada com aquelas retratadas. Também ele tinha vindo de alem mar aportando, anos antes, naquelas terras de basalto aparentemente frio, naquele chão, muitas vezes cor do sangue de quem o desbravou. Também, em seu tempo se tinha enamorado de vulcões e lagoas, também sua memória era e iria ser mais fruto daquela terra.
Sentiu os passos dela trás de si, ou somente a tal impressão de um olhar que nos observa até a alma, á porta viu-a surgir com a luz reflectida naquele rosto de menina onde um supremo pintor tinha pintado a graça e cor daquele dia de Primavera. Era a contemporânea continuação dos quadros que admirava.
Ela surgindo como de surpresa atirou-se por instinto num abraço sentido e, inesperado mas prontamente correspondido como se uma estranha força lhe elevasse os braços correspondendo, não por educação mas por inconsciente desejo partilhado e compreendido.
Seguiu-se a conversa e gargalhadas compartidas como dois colegas de escola que o espaço não tinha separado. O tempo, esse passou com a velocidade inimiga dos momentos que se querem infinitos eternamente continuados.
Tinham-se encontrado um ano anos, numa noite de chuva e, logo aí quis o destino que se perdessem por entre as brumas da ilha em paisagens fantásticas. Ele conduzia o carro sentindo os seus olhos pregados nas suas costas, o que lhe dificultava, ainda mais a condução. Jantaram entre amigos e terminaram noite dentro partilhando gargalhadas e bebendo Whisky de malte. Tinha sido lançada, sem saber a semente que germinaria naquele dia de Primavera.
O abraço da despedida continuou o já guardado e as bocas fugiram, em vão, ao beijo desejado. A música continuava o seu ritmo acompanhando-lhe os passos na partida, talvez agora de modo mais lento e triste. No fundo sabiam as notas bem mais que ele próprio parecendo cadenciar seus passos no sentido da espera.
Somente mais tarde descobriu que suas certezas tinham ficado algures entre as Hortênsias do caminho e o seu futuro selado na luz de um olhar no sabor de um beijo á boca roubado.
Somente dias mais tarde, lá do outro lado da vida e do mar, num fim de tarde da cidade grande, compreenderia a lenda que dizia que bebendo da água da montanha e dos lábios, acrescentaria, não mais deixaria de voltar. Tinha então somente uma certeza, um desejo: voltaria!

Viagem sem Retorno

Era véspera de Natal. Tinha, Pedro, saído de junto da sua mãe rumo á aldeia. Mareavam-lhe os olhos de oceano com aquela certeza profunda que era a ultima ceia que tinha passado com ela. Queria ter-lhe dito o quanto a amava e o quanto amava o destino que o puxava para aquela noite. Queria ter-lhe partilhado que era um homem feliz e o quanto desejava fazer aquela viagem, não só, mas na sua companhia que testemunhasse o seu sorriso junto da mulher amada. Queria ver nos seus olhos, a alegria já partilhada em tempos idos.
A noite fria e solitária abençonhava os quilómetros a percorrer no silencio daquela noite que queria santa.
Tinha desejado que essa seria a noite em que tomaria um banho de lar e calor humano com a escolhida, mas estava só, irremediavelmente só e com a perspectiva de uma maior e eterna solidão. Nada de bom se avizinhava no futuro, para alem desse vazio que, em precisão lhe consumia a alma e lhe alimentava o pranto. Mesmo assim acelerava o carro como que fugindo do destino certo.
Os quilómetros que o separavam do mar e o adensava planice fora, eram como a separação entre o passado e o futuro, o caminho que tinha assumido percorrer vida fora. Á medida que a estrada rolava sobre os seus pés, desfilavam também sobre a sua mente memórias que tinham construído a sua vida entre aquelas duas mulheres. Os primeiros passos de criança e os primeiros passos já adulto em busca da felicidade. Os choros contidos no seu quarto e o conforto daquele beijo de boa noite que nunca tinha faltado.
As memórias sucediam-se ao ritmo das lágrimas e da saudade e do desejo. Saudade de quem tinha ficado para trás, desejo dos braços que o iriam acolher e que o protegeriam, não do frio da noite mas do frio da alma que gela bem mais.
Sobre si a noite mais silenciosa do ano envolvia-o e o seu silêncio permitia ouvir os seus próprios pensamentos. Sabia que estava entre as duas mulheres que mais amara na vida, viajando na ponte que as haveria de unir e separar eternamente. No fundo, haveria sempre a certeza de partida e o desconhecido da chegada.
Tinha partilhado com ela a certeza da partida de sua mãe e o quanto gostaria que estivesse a seu lado naquela noite. Ela tinha sido a sua âncora e seu porto nos momentos de doença. Tinha-lhe pedido num segredo do olhar que estivesse ali mas, quis o fado que tal não acontecesse. Contudo esperava-o lá no fim da planície onde o sol se levanta.
O carro cortava a estrada daquele Alentejo duro, como se sabendo o destino programado da chegada, debaixo das estrelas e sob o frio intenso daquela noite Dezembro. Desejava o abraço do seu corpo, o olhar do seu rosto e sabor da sua pele, como bálsamos para a dor escondida.
Chegou antes da meia-noite que é a hora de todas as passagens. Esperava-o aquele sorriso de mulher, menina, tantas vezes desejada em passados e tempos inenarráveis e ocultados. Sim, que o amor, quando real tem destas cousas ocultas.
Na sala da casa da aldeia encontrou o som de família que já tinha esquecido. Imagens de um filme de Natal visto em criança e que lhe tinha marcado a fantasia de um dia ser também personagem. Vozes que se misturavam com o calor e o crepitar da lenha ao fundo. O cheiro a doces imiscuía-se no cheiro do fogo e trazia á atmosfera um ambiente único. Pela primeira vez, desde os longínquos tempos de infância, sentia no ar aquela atmosfera de lar que o acolhera contudo, sentia no peito a tristeza que o marcara na viagem. Sentia que em si tudo era partida.
A noite decorreu como decorrem todas as noites de Natal com a algazarra natural da abertura dos presentes e com os risos de surpresa das crianças e gargalhadas sentidas na infância recordada dos adultos. Todos sabemos o quão tornamos a ser crianças nessa noite, o quanto desejamos ver nossa felicidade no sapatinho. Ele por seu lado tinha-a e apertava a sua mão como se da última vez se tratasse.
Terminou a noite. O frio gelava os ossos como querendo gelar também as almas e eles rumaram a casa procurando nos braços de cada um o calor que o exterior lhe recusara. Em silêncio percorreram a desertas ruas da aldeia escutando os passos. Dentro de Pedro germinava uma felicidade inconstante e certa. Tinha tido a sua noite, viajado entre passado e presente, desejado futuro. Estava onde queria estar exactamente com quem queria se bem que sentisse em si um vazio que sabendo não queria explicar. Mas, no fundo inebriava-o aquele cheiro doce que o corpo dela emanava. E o tempo que não parava naquela noite como tantas vezes o tinha feito com as memorias do passado. Com as suas ancoras profundas.
Entraram no quarto como se aquele estreito e gélido mundo fosse tudo o que precisavam para serem um. Como se nada mais existisse para alem daquelas portas. Amaram-se como dois corpos sedentos e espantando o frio da noite. No seu rosto, ao coberto da cobardia da noite ou do seu próprio medo, rolaram-lhe duas grosas lágrimas onde se escrevia o fim anunciado pela aurora.