terça-feira, 11 de novembro de 2008

Arvore de todos os Natais

Quando foi que construi aquela arvore de Natal? Foi há tantos dias que somente tenho na mão a marca eterna daqueles ramos partilhados. Foi há tanto tempo que nada mais passa que uma memória irrepetível e saudosa. Nada mais que um momento que se me cravou no peito como o espinho abençoado de uma rosa.
Foi num fim de tarde de um Sábado de Dezembro, algures num tempo que era Natal no coração das cousas e não só no calendário humano.
Como muitas vezes, subi ao sótão onde se guardavam as tralhas da vida. Aqueles entulhos a que nos apegamos inutilmente e aqueles que esperam a sua época de uso. Sempre me apaixonaram sótãos com os seus mistérios conhecidos, com as suas memórias guardadas. São como a face visível da nossa alma, dos nossos apegos humanos, o sinal empoeirado do passar dos dias. Nos sótãos podemos ser eternamente crianças e recordar esses tempos que jazem ali somente á espera de uma oportunidade de brincar connosco.
No canto do costume ali esperava a réplica artificial na forma, mas não na intenção, de um pinheiro nórdico. Olhava-me como que sabendo que tinha chegado o seu momento anual de glorificar a casa. Talvez também adivinhando que glorificaria também as mãos que o iriam tocar, que tocaria corações naquela tarde.
Quando entrei na sala já a musica das vozes de Viena tocava na aparelhagem como uma banda celestial dando as boas vindas ao ritual eternamente efémero que se iria concretizar, num quase silencio que somente gestos macios iriam quebrar.
Colocada estava a árvore nua no local onde abençoaria toda a sala, toda a vida, onde iluminaria todas as ilusões como se iluminasse também todo um futuro. È sabido o efeito mágico das árvores de Natal, com os seus poderes de transformarem em fartura a pobreza dos homens, de encherem de pão o campo e de esperança a alma de quem as admira. Assim seria aquela, assim o desejei com cada molécula do meu corpo, com cada gesto com que a vestiria de luz e cor. Assim o desejei naquele Sábado de Dezembro.
Pouco a pouco se cobriu a árvore de desejos e também de bolas e fitas de cores condizentes. Lentamente se iluminou, lentamente se cobriu de amor feito sob os seus ramos santos. Tudo feito como correspondendo a um livro de instruções não escrito mas ditado pelas mãos que a compunham, pela loucura dos beijos que a decoraram. Na aparelhagem cantavam as cândidas vozes indiferentes ao crepúsculo que caía lá fora ao ritmo que tudo se iluminava lá dentro.
Por semanas se manteve ali a árvore sorrindo como um novo membro da paisagem com a função de fazer das paredes um lar. Ali iluminou o dia a dia durante aquele tempo santo. Ali criou ilusões de eternidade. Ali lançou as raízes que a tornaram viva.
Todos os dias, ao chegar a casa levantava a mão para a cumprimentar mas, sobretudo para agradecer aquela presença que significava para mim a união das mãos que a vestiram, o amor selado sob os seus ramos. Para mim significava o Natal dos homens feito deuses.
Os dias foram passando com o seu ritmo normal e a árvore cumprindo com zelo a sua missão de ali estar, de lembrar o momento em que eu tinha subido ao sótão das memorias e fantasias de criança, para a trazer para o convívio de todos. Lembrava o momento em que, ao som da música, tinha sido construída como quem constrói sonhos e caminhos, bola a bola, fita a fita. Ali estava imponente na sua humildade procurando que eu aprendesse que, na vida nada mais somos que seres em bruto onde outras mãos nos vão vestindo. Ali ficou a árvore até ao dia, dito de reis, quando, por tradição não escrita, se recolhem os escombros das festas. Nunca entendi porque não pode a árvore permanecer o resto do ano, sobretudo se é sua função recordar. Anos depois criei o hábito de não desmanchar o presépio num misto de rebeldia e sentido de dever.
Árvore foi novamente levada para o local de pseudo esquecimento onde me esperaria no ano seguinte, com os seus ramos prontos a receber novamente os afectos depositados. Olhei-a e desejei-lhe bom ano agradecendo as lições e a oportunidade que me dera de a abraçar, desejando voltar a vesti-la de sonhos e prendas e luz.
Mas nós, homens, somos rápidos no esquecimento e fracos nas intenções. Somos lentos no compreender de cousas da metafísica dos gestos e influenciáveis pelo dia á dia e por quem povoa a vida de vazios e invejas. Somos infinitamente limitados e reduzidos a silêncios estéreis. Não mais sabemos cumprir com os desejos e promessas de tolerância. Somos rápidos a viver e a gelar corações que um dia colocamos numa árvore de Natal.
Não mais a vi. Nunca mais lhe pude agradecer e aprender com seus ramos a dádiva daquele abraço. Jamais voltarei a fundir o meu corpo sob a luz protectora dos seus ramos. Hoje talvez ainda esteja lá no sótão das memórias ou do esquecimento. Será talvez mais uma entre tantas. Certamente outras mãos e outros beijos a vistam longe da minha vista mas, no meu coração, descubro em cada dia, que continua armada e presente e só. Despida de cor esperando somente uma oportunidade de ver a luz do dia. A esperança que a vestiu naquele dia partiu com o vento de inverno e dia de Reis. Ficou o vazio e parte de mim iluminado pelos ramos cobertos daquela Árvore de Natal

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