quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Viagem sem Retorno

Era véspera de Natal. Tinha, Pedro, saído de junto da sua mãe rumo á aldeia. Mareavam-lhe os olhos de oceano com aquela certeza profunda que era a ultima ceia que tinha passado com ela. Queria ter-lhe dito o quanto a amava e o quanto amava o destino que o puxava para aquela noite. Queria ter-lhe partilhado que era um homem feliz e o quanto desejava fazer aquela viagem, não só, mas na sua companhia que testemunhasse o seu sorriso junto da mulher amada. Queria ver nos seus olhos, a alegria já partilhada em tempos idos.
A noite fria e solitária abençonhava os quilómetros a percorrer no silencio daquela noite que queria santa.
Tinha desejado que essa seria a noite em que tomaria um banho de lar e calor humano com a escolhida, mas estava só, irremediavelmente só e com a perspectiva de uma maior e eterna solidão. Nada de bom se avizinhava no futuro, para alem desse vazio que, em precisão lhe consumia a alma e lhe alimentava o pranto. Mesmo assim acelerava o carro como que fugindo do destino certo.
Os quilómetros que o separavam do mar e o adensava planice fora, eram como a separação entre o passado e o futuro, o caminho que tinha assumido percorrer vida fora. Á medida que a estrada rolava sobre os seus pés, desfilavam também sobre a sua mente memórias que tinham construído a sua vida entre aquelas duas mulheres. Os primeiros passos de criança e os primeiros passos já adulto em busca da felicidade. Os choros contidos no seu quarto e o conforto daquele beijo de boa noite que nunca tinha faltado.
As memórias sucediam-se ao ritmo das lágrimas e da saudade e do desejo. Saudade de quem tinha ficado para trás, desejo dos braços que o iriam acolher e que o protegeriam, não do frio da noite mas do frio da alma que gela bem mais.
Sobre si a noite mais silenciosa do ano envolvia-o e o seu silêncio permitia ouvir os seus próprios pensamentos. Sabia que estava entre as duas mulheres que mais amara na vida, viajando na ponte que as haveria de unir e separar eternamente. No fundo, haveria sempre a certeza de partida e o desconhecido da chegada.
Tinha partilhado com ela a certeza da partida de sua mãe e o quanto gostaria que estivesse a seu lado naquela noite. Ela tinha sido a sua âncora e seu porto nos momentos de doença. Tinha-lhe pedido num segredo do olhar que estivesse ali mas, quis o fado que tal não acontecesse. Contudo esperava-o lá no fim da planície onde o sol se levanta.
O carro cortava a estrada daquele Alentejo duro, como se sabendo o destino programado da chegada, debaixo das estrelas e sob o frio intenso daquela noite Dezembro. Desejava o abraço do seu corpo, o olhar do seu rosto e sabor da sua pele, como bálsamos para a dor escondida.
Chegou antes da meia-noite que é a hora de todas as passagens. Esperava-o aquele sorriso de mulher, menina, tantas vezes desejada em passados e tempos inenarráveis e ocultados. Sim, que o amor, quando real tem destas cousas ocultas.
Na sala da casa da aldeia encontrou o som de família que já tinha esquecido. Imagens de um filme de Natal visto em criança e que lhe tinha marcado a fantasia de um dia ser também personagem. Vozes que se misturavam com o calor e o crepitar da lenha ao fundo. O cheiro a doces imiscuía-se no cheiro do fogo e trazia á atmosfera um ambiente único. Pela primeira vez, desde os longínquos tempos de infância, sentia no ar aquela atmosfera de lar que o acolhera contudo, sentia no peito a tristeza que o marcara na viagem. Sentia que em si tudo era partida.
A noite decorreu como decorrem todas as noites de Natal com a algazarra natural da abertura dos presentes e com os risos de surpresa das crianças e gargalhadas sentidas na infância recordada dos adultos. Todos sabemos o quão tornamos a ser crianças nessa noite, o quanto desejamos ver nossa felicidade no sapatinho. Ele por seu lado tinha-a e apertava a sua mão como se da última vez se tratasse.
Terminou a noite. O frio gelava os ossos como querendo gelar também as almas e eles rumaram a casa procurando nos braços de cada um o calor que o exterior lhe recusara. Em silêncio percorreram a desertas ruas da aldeia escutando os passos. Dentro de Pedro germinava uma felicidade inconstante e certa. Tinha tido a sua noite, viajado entre passado e presente, desejado futuro. Estava onde queria estar exactamente com quem queria se bem que sentisse em si um vazio que sabendo não queria explicar. Mas, no fundo inebriava-o aquele cheiro doce que o corpo dela emanava. E o tempo que não parava naquela noite como tantas vezes o tinha feito com as memorias do passado. Com as suas ancoras profundas.
Entraram no quarto como se aquele estreito e gélido mundo fosse tudo o que precisavam para serem um. Como se nada mais existisse para alem daquelas portas. Amaram-se como dois corpos sedentos e espantando o frio da noite. No seu rosto, ao coberto da cobardia da noite ou do seu próprio medo, rolaram-lhe duas grosas lágrimas onde se escrevia o fim anunciado pela aurora.

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